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  • Foto do escritorAdriel Alves

Conto - Deus Seja Louvado

Atualizado: 28 de mar. de 2020



— José Roberto Vieira Pinto!

A sala de aula inteira riu. O menino não respondeu, ficou cabisbaixo, com as orelhas em chamas e o rubor crescente na face.

— José Roberto Vieira Pinto!

Desta vez o garoto ergueu a palma da mão, silencioso.

— Da próxima vez não demore tanto a responder, Sr. Pinto – disse o professor com um sorriso malicioso, e, ao terminar a frase, direcionou o olhar para o fundo da sala e continuou a pronunciar os próximos nomes.

 

— Sr. Pinto! – Esta foi a exclamação que o fez voltar no tempo, àquela claustrofóbica saleta. A memória encravara-se como um punhal em seu cérebro. Era incrível como algo tão sutil pudera atormentá-lo por tantos anos e ainda persistia. Maldito sobrenome!

— Pode me chamar de Roberto – respondeu com um sorriso amarelo, depois olhou para o crachá sobre o abdômen rechonchudo do homem que lhe dirigia a palavra. – Sr. Junqueira...

— Desculpe – retrucou o gorducho, meio sem jeito. – A Comissão de Ética me pediu para notificá-lo sobre o seu pedido – o homem remexeu nos papéis que carregava dentro de uma pasta de plástico, uma gota de suor se formou em sua testa proeminente, até que ele encontrou a folha almejada e bufou aliviado. – Aqui está!

Junqueira entregou a Pinto a lâmina fina de papel A4, era algo tão leve que o vento poderia levar facilmente, mas o seu teor era pesado como chumbo.

— Obrigado – Roberto agradeceu ao assessor e este lhe exibiu um sorriso de satisfação, deu meia volta e caminhou adiante, olhando para o relógio de pulso. O Deputado Federal Pinto sabia que o trabalho do dia do Sr. Junqueira estava feito, o gorducho provavelmente iria se dirigir ao seu gabinete e passar o resto da manhã visualizando as redes sociais. Isto se ele não estiver vendo sites de pornografia.

Você pensa demais, Roberto, você pensa demais... Por isto os seus cabelos brancos. Ele baixou as pupilas para o símbolo oficial no canto do documento e vagarosamente desceu-as, decodificando as letrinhas Times New Roman, tamanho 12:

Ao Senhor Deputado Federal,

Notificamos através deste memorando que a sessão solicitada se realizará às 11h00min no Bloco B, primeiro andar, sala número 502, na Comissão de Ética...”.

Leu apenas esta parte do texto, o resto, sabia, eram apenas formalidades inúteis. Faltavam apenas trinta minutos para o horário determinado, então ele desistiu de voltar à sua sala, encaminhando-se para o Bloco B.

 

— Bom dia, Sr. Roberto.

Finalmente alguém que não me chamou de Pinto!

— Bom dia.

— Em que posso ajudá-lo?

— Uma denúncia... Grave...

O homem à sua frente era careca e usava óculos discretos, inspirava autoridade. A palavra “grave” pareceu esbofeteá-lo, ele fez uma careta e o cenho torceu-se marcando uma expressão carrancuda. Curvou-se para frente, interessado, aproximando-se de Roberto.

— Prossiga.

O deputado pigarreou e iniciou o relato:

— Bom, eu estava no toalete e escutei uma conversa entre dois colegas nossos. Era sobre um esquema ilegal de licitação com grandes empreiteiras... Citaram valores e nomes, também marcaram um local para distribuir a propina e...

— O senhor lembra-se dos nomes?

— Alguns. O Walter Pereira. O Sales, aquele que tem um sinal de nascença no rosto. O Boneco, sabe, aquele humorista de Salvador... Ouvi também o nome do Norberto Rosa. Confesso que fiquei espantado...

— Uhum – respondeu o membro da comissão, um pouco desinteressado. Ele digitava no computador enquanto Roberto delatava os políticos, talvez estivesse anotando os nomes que Pinto citava, ou não...

— Acho que eram só estes...

— Sr. Roberto, a sua informação será mantida sob sigilo absoluto, enviaremos a denúncia ao órgão competente dentro de três dias. Nesse tempo o senhor pode renunciar de sua decisão, caso tenha havido algum equívoco. Agradecemos a sua presteza, o senhor é um exemplo para todo o Congresso.

— De nada, é um prazer colaborar com meu país – disse Roberto, selando o encontro com um aperto de mãos.

O homem balançou positivamente a cabeça luminosa e esbanjou um sorriso leve.

 

Pressionou a tecla enter no teclado de seu netbook para iniciar o próximo parágrafo do primeiro projeto de lei de sua autoria, em breve o enviaria para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania para que julgassem sua constitucionalidade. Seu celular vibrou sobre a mesa, um pequeno texto piscava no visor: número privado.

— Alô?

— Sr. José Roberto Vieira Pinto? – Perguntou uma voz abafada do outro lado da linha.

— Sim?

— Tomamos conhecimento de sua denúncia.

— Quem está falando?

— Não importa.

A frase estrangulou o coração de Roberto. A fala gutural continuou:

— Temos um recado para você. Ou você desiste da denúncia, ou a sua vida e a de sua família correrão sério perigo, entendeu?

— En... entendi.

— Ótimo. Vá até a Comissão amanhã e dê um jeito. Depois de amanhã, se você não tiver resolvido, as coisas poderão ficar feias para o seu lado, entendeu?

— Sim...

A ligação encerrou-se com um bip.

Foi uma noite terrivelmente mal dormida, aquela do dia da ameaça. Uma dor de cabeça o abatia severamente. No fim da tarde, chegando a seu lar, a primeira coisa que fez foi abraçar a filha de 12 anos e dizer à esposa que a amava, beijando-a com uma vontade imensa, como há muito tempo não fazia, ela estranhou. Batalhou contra si mesmo, contra a própria honestidade e chorou sozinho no banheiro. Foi questionado pela mulher, respondendo-a que entrou xampu em seus olhos durante o banho. Pensou no ínfimo dano ao erário e no seu tesouro inestimável, sua família, e na tragédia que poderia destruí-la. Decidiu-se.

Não há o que fazer. Não tem jeito. Iria até a Comissão e diria que agiu de má fé denunciando os colegas devido a certa inimizade. No máximo ganharia uma advertência ou suspensão.

No dia seguinte, foi abordado por um pedinte no sinal enquanto dirigia até o Congresso.

— Dá uma ajudinha, doutor.

Ele arrancou uma cédula de dois reais da carteira. Quando segurou o dinheiro, seu olhar bateu em uma pequena inscrição no canto inferior da nota:

Deus seja louvado.

Sorriu.



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